Black Mirror, de Charlie Brooker


FICHA TÉCNICA

2011 / 05 temporadas

Criador: Charlie Brooker

Direção: Brian Welsh, Euros Lyn, Otto Bathurst

Gênero: Drama, ficção científica, thriller

Nacionalidade: Reino Unido, Irlanda do Norte


A série Black Mirror causa impacto e estimula discussões sobre a relação do ser humano com a tecnologia e de como a onipresença tecnológica moldou, condicionou o comportamento dos indivíduos e das sociedades, além dos efeitos colaterais no que tange à ausência de sentido adoçada pelo entretenimento ininterrupto das telas. O espelho preto (black mirror) é trincado e sinaliza a teatralização ubíqua dos afetos, das emoções, da razão, da vida, bem como da existência.


A obra é um conjunto uníssono que, ao mesmo tempo, forma um todo dissonante. Os episódios são únicos e sem continuação, quando muito, fazem algumas referências ligeiras e irônicas a fatos ocorridos em episódios anteriores. Cada minuto pretende narrar de forma subversiva alguns dos principais dilemas atuais como a manipulação dos dados, relações digitais e vigilância nas redes, obsessão coletiva nas mídias sociais e extimidade, inversão de valores, espetacularização da crueldade e do eu, corpo artificial, entre outros infortúnios que revelam o quão ridículo o virtualismo pode ser. 


A série demonstra como a realidade concreta é empobrecida pela ausência de intimidade de maneira que até o próprio virtual - enquanto produto consequente e representativo da realidade concreta - é superficializado pela aparência de intimidade, isto é,  “mesmo as interações presenciais não” possuem “pessoalidade”, visto que são mediadas pelo virtual e “mesmo estando no mesmo local e interagindo com o outro, só existe uma conexão baseada no interesse por melhorar o ranking” (COUTO; SANTOS; VELLOSO, p. 1142, 2019). 


Desse modo, ocorre uma inversão na esfera do agir: o que deveria ser técnico e teórico, perde-se nas distorções feitas pelo excesso de si, bem como o concreto que deveria ser o âmago da intimidade, empobrece pelo processo de transferência do real para o virtual. As virtudes e os valores são transferidos do mundo real para o virtual, pois é lá que a teatralização e espetacularização gera engajamento, assim como as teorias não objetivam mais a descrição do real, mas apenas justificar e legitimar a teatralização dos bons costumes presentes no virtual e que tornaram-se concretamente inexistentes. 


Segundo Fantin, Santos e Martins (p. 1155, 2019), a alienação não é mais provocada pela opressão da luta de classes, mas pelo espetáculo onipresente das imagens e do aparecer, visto que “o espetáculo não diz respeito apenas a um conjunto de imagens, mas sobretudo a uma relação social entre indivíduos mediados por elas”. O espetáculo descaracteriza a realidade e a verdade, ou melhor, o espetáculo aliena a realidade e a verdade em prol da teatralização virtual de modo que a verdade das coisas é falsificada pela hipocrisia de um falso self. A sociedade é esmagada pelos “perfis sociais hiperconectados e [...] uma hipocrisia onipresente” (FANTIN; SANTOS; MARTINS, p. 1156, 2019). O corpo é alterado pelos implantes que visam acentuar ainda mais a experiência da realidade aumentada, tal como a busca pela igualdade cria mais desigualdades que são estabelecidas pelas pontuações das redes e que também definem o valor, a classe e o preço (curtidas, seguidores, estrelas, etc.). 


Antes do nascimento da internet os métodos de fuga e negação da realidade eram feitos por intermédio dos subterfúgios metafísicos, todavia, o elo entre real e abstrato não era totalmente obstruído como ocorre no mundo metafísico-cibernético, que acentuou e acentua cada vez mais o rompimento com a realidade concreta, ou pior, a internet inaugurou um método de fuga e negação da realidade que é caracterizado pela falsa união da “vida real” com a “vida virtual”. É a vida aprisionada nas telas “que, se por um lado pode reafirmar a artificialidade de nossas interações cotidianas, também nos conforta e nos parece transmitir uma certa promessa de que estamos lidando de modo mais transparente uns com os outros” (COUTO; SANTOS; VELLOSO, p. 1134, 2019).


O mundo real é distorcido, negado e julgado de forma mais impactante do que as formas de negação (ou de niilismo) que eram comum entre os metafísicos ressentidos com o mundo que Nietzsche tanto combateu. E como bem pontua Lima, Santos e Dantas (p. 08-09, 2017), com a internet “não há separação entre realidade e representação simbólica” e o que é mais “específico ao novo sistema de comunicação não é a indução à realidade virtual e sim a construção da virtualidade real”, na qual as “relações simbólicas produzidas [...] vão formando extensões onde não há separação entre ‘realidade’ e representação". 


Se o filósofo Nietzsche se revoltou tanto com as formas de negação da vida e de niilismo menos acentuadas do que as da atualidade virtual, então, é de causar pavor ver que as novas formas de negação da vida, bem como o novo niilismo que com uma nova roupagem chamada realidade virtual, move o valor da vida não para entidades metafísicas como ocorreu em algumas metafísicas clássicas e modernas, mas ousa transferir o próprio real para representações virtuais que, por intermédio de implantes e apetrechos tecnológicos, efetua-se uma falsa união entre real e virtual com métodos psíquicos e neurais.  


Enfim, ressalta-se a relevância da série Black Mirror para se pensar e repensar os principais riscos das novas tecnologias, principalmente as mais voltadas para a internet, bem como para as ferramentas tecnológicas que visam uma supervalorização da vida virtual em detrimento da vida real e da realidade em si, destacando que a realidade concreta do mundo e da vida é o espaço real no qual encontra-se a totalidade dos fenômenos e afetos que enriquecem a vida. 


REFERÊNCIAS


COUTO, D. R.; SANTOS, R.; VELLOSO, L. Rede social e comunicação ubíqua: o que podemos aprender com Black Mirror?. Rev. Diálogo Educacional, v. 19, n. 62, p. 1128-1146, 2019. Disponível em: clique aqui. Acesso em 05 de nov. 2021. 


FANTIN, M.; SANTOS, J. D. A.; MARTINS, K. J. Black Mirror e o espetáculo revisitado: um estado da arte e algumas reflexões. Rev. Diálogo Educacional, v. 19, n. 62, p. 1147-1173, 2019. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 05 de nov. 2021. 


LIMA, B. N. C.; SANTOS, S. M. M.; DANTAS, D. F. Mídia e Novas Tecnologias: A Sociedade em Queda Livre na Série Black Mirror. In: CONGRESSO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO NA REGIÃO NORDESTE, 19, 2017, Fortaleza - CE. Anais [...] Fortaleza - CE, 2017. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 07 de nov. 2021. 


Comentários