Melancolia, de Lars Von Trier


FICHA TÉCNICA

2011 / 136 mim / Dinamarca, Suécia, França, Alemanha

Direção: Lars Von Trier

Gênero: Drama, suspense, ficção científica

Elenco: Kirsten Dunst, Kiefer Sutherland,

Charlotte Gainsbourg


A obra do cineasta dinamarquês Lars Von Trier pode ser entendida como uma espécie sequencial de pulos no abismo, ou ainda, de vários saltos em direção aos abismos da condição humana, isto é, os medos provenientes da finitude, desamparo e angústia diante da impotência pela insustentável permanência de sentido e leveza do ser. Estas questões são temas fundamentais do filme “Melancolia” e da visão de mundo presente nas demais obras deste cineasta.


O filme inicia em câmera lenta ao som de Richard Wagner, pincelando uma espécie de prólogo ao caos mental e existencial por vir. A obra divide-se em duas partes, ambas com o nome das personagens que ocuparão o centro da trama melancólica: Parte um, Justine; Parte dois, Claire. As duas personagens são irmãs e seus destinos estão inerentemente entrelaçados pela angústia do desmantelamento ontológico no qual não há como ancorar-se em valores ou verdades, pois no mundo de Von Trier, falta alívio e sobra angústia. 


A primeira parte do filme desconstrói, aos poucos, toda possibilidade de segurança creditada pelos valores mais sagrados da humanidade, tais como família, amor, instituições, cultura, arte, dinheiro, etc. O casamento de Justine afunda pelo excesso ornamental e pela ausência de significado, uma cerimônia em que a vontade de outrem constitui a subjugação do eu que perde-se na insatisfação e covardia de ousar ser aquilo que realmente deseja ser, mas enlouquecendo diante da insanidade do outro que quer muito, menos nossa satisfação.


O casamento de Justine é mais um protocolo de felicidade forçada do que uma realização própria, pois todos sabem o que é melhor para a noiva, menos ela mesma. E ela, angustiadamente, reprime-se e luta para encaixar-se no ideal de felicidade proposto pelo exuberante ilusionismo cerimonial, mas, seguido dos discursos à mesa - de familiares pouco preocupados com a anfitriã -, Justine inunda-se de uma lucidez melancólica na qual o sem sentido cerimonial, existencial e social da sua vida revela-se em estado de pleno niilismo. Os donos da festa - que não é a noiva, muito menos o noivo - suplicam à Justine exigindo postura para que a mesma não estrague a fatura exorbitante (a festa); e não tem do que reclamar, pois, na visão dos organizadores, Justine tem tudo que precisa, mais do que qualquer um dali, cheios de boas intenções para com a noiva.


As irmãs são expressão da ambiguidade humana. De um lado, simbolizando a racionalidade e as convenções como maternidade, matrimônio e lar, encontramos Claire; do outro, temos a insatisfação, rebeldia, insegurança e a melancolia cristalizadas em Justine. A obra é repleta de referências culturais, históricas e filosóficas, ou seja, sabe-se que a melancolia é um estado mental amplamente estudado pela filosofia desde a antiguidade e, no filme, Von Trier destaca este estado mental que é caracterizado pela tristeza, depressão mórbida, ideias delirantes, alucinações e tendência para o suicídio, sob a colisão entre o planeta Melancholia e a Terra. 


O planeta Melancholia é a morte iminente, ou ainda, o desespero diante do imponderável. O marido de Claire é o porta-voz da ciência que, através do discurso científico e de sofisticados cálculos, tenta agarrar-se a uma pequena probabilidade salvífica, mas ao confrontar-se com o fato de que a ciência é impotente perante o imponderável, retira-se em silêncio e a razão científica cede seu lugar para o suicídio. Ao notar o inevitável, Claire desespera-se, tenta fugir e, tragicamente, percebe que não há escapatória: nem na ciência ou nas convenções encontra respostas, sequer há consolo; em contrapartida, Justine encontra-se calma, pois o traumático lhe é comum e sempre presente, nunca encontrou consolo, seja na ciência ou nas convenções.


Apenas diante do caos, Claire compreende sua condição de finitude pela perda da ilusão e das certezas, ou melhor, uma verdade antiga, arraigada no mais inconsciente de nossas almas, sorrateira e silenciosamente adormecida, desperta ao som da ópera “Tristão e Isolda”, de Richard Warner, declarando: estamos sós. A verdade da obra “Melancolia” é tão brutal quanto a tragédia de amor do mito medieval entre o cavaleiro Tristão e a princesa Isolda: aquele, morre sozinho na esperança de ver sua amada; e Isolda, ao encontrá-lo morto, morre de tristeza.


Nos últimos minutos de filme, o único consolo é um refúgio metafísico feito com frágeis galhos secos. Uma fantasiosa caverna, alternativa às ciências e às verdades sérias, é construída com um único propósito: ressignificar o medo e a condição humana de finitude. As verdades simbólicas não são questionadas ou racionalizadas neste ponto da obra, apenas servem de degraus para o acolhimento do inevitável desconhecido: a morte.


NOTAS


[1]. “Tristão e Isolda” é uma das óperas mais famosas do maestro alemão Richard Wagner. Caso o leitor deseje ouvir e baixar gratuitamente, respeitando os direitos autorais, a obra encontra-se disponível nas referências. 


REFERÊNCIAS


PANACHÃO, Ana Lúcia. Resenha do filme Melancolia, de Lars Von Trier. Departamento de Psicanálise - Sede Sapientiae, 2011. Disponível em: http://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/index.php?apg=b_visor&pub=19&ordem=15#:~:text=A%20incid%C3%AAncia%20da%20claridade%20do,travado%20entre%20vida%20e%20morte. Acesso em: 04 de abr. 2021. 


WAGNER, Richard. Tristão e Isolda. International Music Score Library Project, 1857-59. Disponível em: https://imslp.simssa.ca/files/imglnks/usimg/3/33/IMSLP298646-PMLP03546-RWagner_Prelude_to_Tristan_und_Isolde.ogg. Acesso em: 08 de abr. 2021. 


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