Obra de arte de Pawel Kuczynski. |
Escrevi sobre ciência e xadrez, sobre filosofia e religião, sobre filmes e séries, sobre animes e música… Tudo aparentemente tão diferentes. E no entanto - não sei se vocês notaram - eu escrevi o tempo todo sobre uma mesma coisa. Fiz aquilo que os Engenheiros do Hawaii chamam de Variações sobre um mesmo tema. Meu tema? A educação: a minha educação, a sua educação, a educação de seu filho ou de sua filha, a educação do seu aluno.
A educação é um lugar extraordinário onde moram, escondidos, os segredos do mundo inteiro. Como nas palavras moram escondidos os significados e suas inúmeras formas de beleza, e também os incontáveis e sofisticados conceitos; como na cultura mora escondida uma cidadania, e na cidadania, uma cultura; como nas criações humanas moram críticas e nas críticas moram criações humanas; como em burocratas que esquecem de pensar moram sujeitos críticos que anseiam pelo esclarecimento das coisas…
Tudo escondido… O que vai revelar é aquilo que a crítica vai examinar. As críticas são ferramentas da razão, potências legitimadoras, poderes racionais que testam as conclusões adquiridas por meio da razão, num estado de experimentação, como investigações. Nossa educação é feita de críticas… Assim, podemos ser sujeitos de significados e conceitos, de cultura e cidadania, críticos ou sujeitos que ignoram o esclarecimento das coisas.
Diferente da “educação” dos animais, que nascem “educados” pelo processo biológico, a nossa educação, ao ser iniciada, é como um infinito de possibilidades, à espera da crítica que fará aflorar, do seu julgamento, aquilo que ela legitimou. Uma constante e criativa experimentação que poderá criar cidadania, sabedoria, ou tecnologias e suas incalculáveis variações…
A este processo experimental pelo qual a crítica revela os significados escondidos se dá o nome de educação. Críticos são todos aqueles que têm esta capacidade. Por isto que os críticos me fascinam. Hoje o que fascina é o sensacionalismo da polarização, que sabe o que é e o que não é sem questionar. Poucos se dão conta de que a beleza maior se encontra no poder da crítica para fazer as experimentações da razão. É no lugar onde a crítica faz amor com a razão que começa a sabedoria… Por isso que compartilho da certeza de Goffredo Telles[1], que dizia que o ser humano não nasce livre, “ele se faz livre à medida que se torna racional”.
Mas é preciso discernir bem. O tribunal da crítica tanto pode julgar como destruir, tanto pode examinar como condenar… A crítica pode ser um feitiço que nos faz esquecer que há limites, a fim de nos jogar no extremo niilismo. O que me faz lembrar de um texto de Kant, filósofo alemão que passou anos escrevendo sobre a crítica da razão. Foi certamente inspirado pelo que via acontecendo diariamente com os críticos de sua época que frequentavam os melhores (vejam bem, eu escrevi “melhores”...) centros de ensino, que escreveu “O que é Esclarecimento?”[2]: sobre a saída da menoridade auto-imposta, da ausência de coragem, da entrega à tutela de outrem, ou, sobre a preguiça e covardia da razão tutelada à vontade de outros. Se isto for verdade, se o que a razão faz nem sempre é ousar pensar sem a tutelagem da mesma a outrem, mas antes tutelar-se para depois suplantar a crítica legítima (afinal de contas, cada razão deve ser útil legitimamente), então o caminho da crítica exige um esclarecimento: é preciso superar a tutela, a fim de se poder recordar aquilo que a preguiça e a covardia soterrou. Descartes[3], na obra que escreveu sobre seu método, dizia que o bom senso é a coisa mais partilhada do mundo, mesmo os insatisfeitos em qualquer outra coisa, pensam ser tão bem providos de bom senso que “não costumam desejar tê-lo mais do que o têm”.
A miséria da crítica (ou chame-a de bom senso, ou esclarecimento, ou ainda, de sapere aude) não é visível onde ela é danosa. Sua miséria se mostra justamente onde ela é eficiente. Pois, quando é que a consideramos eficiente? Justamente ali onde ela pode, com perícia técnica, “julgar a qualidade” das razões que ela deseja legitimar. E que legitimação é esta que se deseja? Quem dá essa resposta de forma provocativa é Friedrich Nietzsche, filósofo alemão que, durante toda a sua vida, dedicou-se à crítica da cultura. Ao criticar a educação, aponta que a formação técnica prepara as pessoas para o mercado e as tornam leais às regras, princípios, comportamentos e ações que, de forma burocrática, são instituídas pela sociedade e o estado. Como resultado, a eficiência técnica da educação influencia a da crítica, podendo criar formas de tutela que são planejadas pela técnica e legitimadas por uma crítica distorcida de sua verdadeira natureza.
Não importa o nome que se dê a esta crítica, para quem a educação, a cultura e a cidadania se volta. Não importa os retornos que se possa adquirir ao fim dos esclarecimentos que a razão faz brotar à luz da crítica. Permanece um fato fundamental: que ela só se realiza no abandono das tutelas, como possibilidades escondidas, na crítica das coisas. Toda criação humana deve se transformar em significados e conceitos, toda cultura deve transformar o sujeito em cidadão, todo sujeito deve se transformar em um crítico que anseia pelo esclarecimento das coisas… Não é de se estranhar, portanto, que as pessoas tuteladas sintam a estranha sensação de que suas convicções não são provenientes de um esclarecimento legítimo. Elas foram transformadas em alguma coisa contrária ao sujeito crítico, e esta transformação as condenou à imaturidade da razão.
NOTAS
[1]. TELLES JR, Goffredo. Conhece-te a ti mesmo. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, nº. 51, p. 234-246, 1956. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 17 de mai. 2019.
[2]. KANT, Immanuel. Resposta à Questão: o que é o Esclarecimento?. In: Immanuel Kant: textos seletos. Trad. Raimundo Vier. Petrópolis: Vozes, p. 100-116, 1985. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 17 de mai. 2019.
[3]. DESCARTES, René. "Discurso do Método". In: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1979, p. 29.
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